Nunca o valor do saber foi tão desafiado pelas ferramentas por ele criadas.
Se antes o conhecimento era um privilégio, desde a internet ele felizmente está cada vez mais acessível. Hoje, o conhecimento está teoricamente a um chat de distância.
No entanto, também nunca foi tão claro que apenas coletar fatos não é suficiente: se todos têm o mesmo acesso, que diferença faz? O verdadeiro poder está na capacidade de distinguir, conectar e transformar esses fragmentos em algo novo — a ferramenta consegue combinar mas só a faísca humana é capaz de criar sentido.
É aí que entra o valor das palavras.
Mais do que simples veículo para mensagem, a palavra constrói a ponte entre o que as coisas são e o que elas podem ser.
Tudo que temos, no fim das contas, é palavra — e o modo como a usamos determina o impacto que podemos gerar.
Just do it
Quando abrimos a BR/BAUEN em 2012, depois de definirmos nosso nome, a constante foi fazer, fazer e fazer.
Afinal, BR=Brasil, BAUEN = Construir em Alemão. Quando esse nome fez sentido, ficou claro que a visão em que acreditávamos era mais científica do que artística.
De tanto fazer, alguém logo perguntou:
“O que vocês fazem?”
Com seu bom humor icônico, quem perguntou foi o Bruno Porto durante um café que ele fez questão de pagar no IESB em Brasília.
Eu me lembro de sentir como se eu não soubesse o que eu fazia.
A verdade é que eu não sabia direito o que eu pensava sobre o que eu fazia.
Falamos, falamos, e com razão, teve gente que só viu o que a gente fez e não entendeu o que a gente pensava daquilo. Falei no plural, porque essa palestra eu fiz junto do meu ex sócio Braz.
Imagine só como foi a volta para Goiânia depois desse balde de água fria.
Só agradeci ao Bruno alguns anos depois e fiz questão de levar nosso novo cartão de visitas que trazia o que foi a nossa primeira e mais importante forma de descrever ‘o que fazemos’. Por mais abrangente que possa soar, entender a nossa ideia de marca é “We Design Brand Perception” foi determinante para moldar a forma como faríamos nosso trabalho para nós mesmos antes de continuar evoluindo como fazer com e para os outros.
A outra metade
Tudo é palavra antes de realmente ser.
Você já deve ter passado por uma situação onde alguém disse que não entendeu o que você quis dizer. Para muitos o problema está no interlocutor, para Ralph Waldo Emerson, um aclamado escritor, filósofo e poeta estadunidense, isso pode significar que nem você mesmo entendeu do que está falando..
O homem é apenas a metade de si mesmo; sua outra metade é a sua expressão. — Ralph Waldo Emerson
Emerson vai além e defende que o conhecimento de verdade só existe quando somos capazes de escrever de forma que todos possam entender.
É o famoso ‘falar fácil’ sem a ilusão de que para isso você tem que falar dificil.
Percebo que isso é real das menores às maiores coisas, falando, escrevendo ou até desenhando:
Se eu quero evitar que meu filho de 2 anos pule do sofá e quebre o braço, existe uma grande diferença entre dizer:
“Não pule do sofá!”
e dizer
“Que tal se a gente brincar de bola lá fora”?
Se eu quero promover o otimismo feminino em produtos de beleza para mulheres de meia idade, teria enorme diferença entre convidá-las dizendo:
“Seja uma nova versão de mulher”
ou dizer que
“A mulher pode surgir mais bela em sua segunda primavera”.
A primeira diferença eu aprendi com a Letícia, minha esposa, sócia e mãe do nosso filho Álvaro. A segunda com um sujeito chamado Machado de Assis.
No dia a dia faz toda diferença se vamos chamar uma despesa de custo ou de investimento. De preço ou de valor. De aposta ou investimento.
Parece pouco, mas acho que deu pra sacar onde eu quero chegar.
Para bem ou para mal, as narrativas estão em constante formação por meio da nossa escolha intencional ou não das palavras.
Para mim, isso ficou claro quando o banco central contabilizou que as bets já custaram 3 bilhões de reais às famílias brasileiras somente em agosto de 2024.
É fato que a fézinha não é novidade para o brasileiro. As bets usaram um mecanismo mais ágil sob uma narrativa ainda mais leve e colocaram a loteria no bolso.
Seria ingenuidade nossa achar que isso aconteceu de forma não ordenada, mas quando inúmeras marcas e influenciadores passaram a chamar os sites de apostas de ‘oportunidade para fazer uma grana extra’, grande parte da população brasileira começou a torrar um dinheiro que não têm com essa esperança.
O cuidado vale tanto para nossas ideias quanto para as ideias que endossamos.
Ninguém sabe o que o calado quer
Durante a revolução Francesa, a grande quantidade de dialetos regionais dificultaram a difusão de ideias revolucionárias — até que os líderes da revolução introduziram expressões como “la patrie” (a pátria) e “le citoyen” (o cidadão) — que ajudaram a articular novos conceitos de identidade nacional.
Cento e cinquenta anos depois, quando a França estava à beira do colapso na Segunda Guerra e a Grã Bretanha estava prestes a ser invadida, Winston Churchill poderia ter usado, no ponto alto do seu discurso, somente 8 palavras:
We shall fight everywhere. We shall never surrender.
Ele disse mais.
Ele fez questão de ilustrar cada lugar onde aconteceria o sofrimento das tropas:
We shall fight on beaches,
we shall fight on the landing grounds,
we shall fight in fields and in the streets,
we shall fight in the hills.
31 palavras. Quase um plano de batalha, até o desfecho que realmente importava:
“We shall never surrender.”
O discurso não começa nem termina nesse trecho, mas essa é a parte mais lembrada.
Você pode gostar ou não dele e de suas políticas. Mas não pode negar que ele dominava a retórica.
Ele sabia que não era o suficiente conquistar as mentes, sendo direto e objetivo. Ele sabia que precisava conquistar os corações amedrontados de cada um que ouvisse para obter apoio para o que viria a seguir.
A falta de estímulo visual, a incerteza do momento e o sucesso que viria contribuíram para a grandeza do discurso. Muitos dizem que ele foi transmitido por rádio — na verdade ele foi lido na Casa dos Comuns e depois citado muitas vezes na voz de outras pessoas.
Ele pintou uma cena com palavras.
Um quadro que permitiu a quem não estava no campo de batalha visualizar de alguma forma como seria estar.
O mito da genialidade
“I have an idea”.
Se Martin Luther King Jr. tivesse dito isso, no lugar de “I have a dream” eu tenho quase certeza que eu não estaria citando ele aqui.
O que eu descobri recentemente em um artigo do The Guardian é que o famoso discurso não foi a primeira vez que ele usou a expressão.
Ele já havia tentado emplacar a ideia em outros discursos meses antes em Detroit e Chicago. É também fato conhecido que um de seus conselheiros lhe pediu que parasse de usar a expressão porque a considerava clichê. Por isso a versão final do discurso não tinha essa parte. Relatos contam que quando ele se aproximava do final do texto ele sentiu que faltava ‘impacto’.
Em um sinal de que não era só ele quem sentia falta disso — uma voz na qual ele confiava sugeriu:
“Conte a eles sobre o sonho!”
Não fosse por essa pessoa, o resto poderia não ter se tornado história.
A questão aqui é: não foi improviso.
Ele já havia dito aquelas palavras antes.
Ele já havia colocado em palavras aquela intenção.
É comum pensar que grandes ideias acontecem por pura genialidade.
Como em qualquer outra habilidade, o segredo não tão secreto assim mora não só repetição mas muitas vezes na persistência.
Não fale por falar
O que eu gosto em ambos os exemplos que citei acima é que eles estão longe de ser como a água morna.
Já bebeu água morna? Ela só não passa despercebida porque embrulha o estômago. Na pele pode até ser confortável, em todas as outras situações ela não será lembrada porque não provoca nenhuma mudança de estado.
Palavras mornas tem o mesmo efeito.
Quando uma marca como o Itaú chega ao seu centenário, o que para muitas empresas seria motivo de pensar somente no que foi, para eles foi motivo de celebrar também o que pode ser. Ou melhor, continuar sendo.
Só quem já provou que é verdade chegaria aos 100 anos dizendo que é feito de futuro: O Itaú foi pioneiro na digitalização do sistema bancário, na implantação de caixas eletrônicos e do internet banking. Para o Itaú essa frase foi uma mera constatação.
Independente do momento, seja com 5 ou 100 anos: ter clareza sobre os próximos passos não vai acontecer sem pensar com o lápis no papel. Escrever nos ajuda a colocar em cheque o que realmente pensamos sobre o que acreditamos.
Se preferir pensar de forma puramente transacional, ter clareza pode ser a diferença entre vender para quem precisa e vender para quem acredita na mesma coisa você acredita.
Não estou comparando o seu próximo post na rede social com o discurso do Churchill. Não estou dizendo que seu próximo e-mail para os seus colaboradores precisa ter inspirar uma revolução geracional como o de Luther King Jr.
Porém, não é porque sua mensagem é supostamente menos nobre ou grandiosa que você não deve prestar atenção às palavras.
Em tempos em que se fala tanto de futuro, comecei a acreditar que ele pertencerá a quem usa bem as palavras.